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O que muda no Harlem

 

 

Se paradoxos não existissem na vida cotidiana, bem difícil seria acreditar na sua falta de lógica. À medida que o tempo passa, parece aumentar o sentido da máxima criada por Giuseppe Tomasi di Lampedusa no livro Il Gattopardo. As coisas mudam para permanecer as mesmas. Esse retrato de relações engessadas apareceu há 20 anos em Jungle Fever (1991), filme de Spike Lee.

O longa-metragem relata a relação complicada, condenada à falência, de Flipper Purify (Wesley Snipes) e Angie Tucci (Annabella Sciorra). O primeiro é um afro-americano, morador do Harlem, norte de Manhattan ou uptown. A segunda é uma ítalo-americana, morada de Bensonhurst, sul do Brooklyn. Quando começam a se relacionar – ele é casado -, transformam-se em párias tanto para os familiares quanto para a sociedade.

O retrato de Spike Lee é amargo, contundente. Na sua observação atenta, ele cria ambientes familiares em que se exibem os preconceitos e equívocos dos personagens, além das relações miúdas, realizadas no espaço das ruas.

O irmão de Flipper é Gator Purify (Samuel L. Jackson), um viciado em crack. O Harlem aparece no filme de Lee como um lugar entregue à própria sorte, onde pedestres chutam cachimbos usados pelos crackheads e são abordados por prostitutas.

Samuel L. Jackson, hoje o ator mais rentável da história do cinema, saíra pouco antes de um programa de reabilitação para fazer o seu papel, premiado, em Jungle Fever. A aparência do personagem era, na verdade, a aparência do ator, debilitado pelo consumo de álcool e drogas. A namorada de Gator, também uma viciada, é feita pela Halle Berry, que teria ficado sem tomar banho por duas semanas para ser Vivian, uma crackhead desbocada.

A fama do Harlem não era nada boa. Mas alguma coisa está acontecendo. Reportagem publicada pelo The New York Times, em 2 de dezembro deste ano, mostra a luta de moradores para impedir a abertura de uma liquor store na Lenox Ave com a 119th Street. (Leia a íntegra em As Tastes Change in Harlem, Old-Look Liquor Store Stirs a Fight).

Essa é uma região conhecida como Mount Morris Park Historic District, onde há townhouses e brownstones históricos, descobertos nos últimos meses pelos guias de turismo. Entre os seus moradores mais antigos está Albert Maysles, documentarista e dono de um cinema na Lenox, entre a 124 e a 125.

Há 20 anos, esses imóveis estavam abandonados. Hoje podem valer até US$ 3 milhões. Um dos restaurantes, Settepani (Lenox e 120), abrigou recentemente a festa de aniversário do ex-presidente Bill Clinton, cujo escritório é na 125th Street.

A controvérsia é que, segundo um dos moradores, para ser uma Park Slope, região descolada do Brooklyn, para onde afluem os hipsters, não pode haver uma loja que vende bebidas e tem anúncios tão cafonas. O Harlem presencia a gentrificação ou valorização imobiliária dos seus apartamentos. Na região, pela qual o 28th Precinct é responsável, a criminalidade caiu 70% nos últimos 20 anos. Em 1990 houve 41 assassinatos. No ano passado foram 6. Alguma coisa parece ter mudado no Harlem, apesar da maldição do Il Gattopardo. Ou a sujeira está sendo só afastada para longe dos olhos para que as mudanças significativas, mais uma vez, permaneçam engessadas?

A gentrificação do Harlem

Leia reportagem sobre as mudanças urbanas e culturais no Harlem, bairro negro de Nova York

Publicado na edição 662 da revista Carta Capital

A invasão branca

Harlemites conversam em quarteirão da 116th Street, conhecido como Little Senegal